INTERNAÇÃO
PARA: Luiz de Campos Salles (Pai), Ana Maria Ciufe (Mãe), Ana Paula de Campos Salles (Irmã), Fernanda de Campos Salles (Irmã), Roberta de Campos Salles (Irmã), Fernando Lacaz (Psiquiatra)
DE: Marcelo de Campos Salles
ASSUNTO: Como eu me sinto
Sei que amanhã vocês vão conversar com meu psiquiatra. Vou tentar dizer como eu me sinto.
Primeiro, sou muito grato por ter vocês, que se preocupam e já fizeram muito mais por mim do que eu talvez fizesse por outra pessoa.
Segundo, me sinto profundamente envergonhado da minha inutilidade. Sempre me achei muito inteligente e competente, e hoje questiono o quão verdade é isso. Sinto vergonha de ganhar mesada, sinto vergonha de não produzir, não pagar minhas contas, e na minha idade, não poder comprar nem sonhar com nada material por absoluta falta de competência.
Não posso convidar uma moça para jantar ou mesmo sair com amigos. Não culpo ninguém, fora eu mesmo.
Também me sinto sem forças para lutar. Infelizmente sou indisciplinado e sonhador, o que só me atrapalha. Ando muito deprimido, mas não sei se é o caso de tomar (mais) remédios.
Em certos momentos me sinto sem esperança, e morrer não me parece uma má ideia. Não tenho vocação para parasita, e não acho que ninguém tem obrigação de me ajudar, na verdade acho que já tive ajuda demais. Tenho me afastado de amigos queridos, por falta de dinheiro e por vergonha também.
O tempo livre também me deixa entediado e angustiado, e não estou com vontade de evitar consumo de drogas legais ou ilegais: é a única fuga que eu tenho hoje.
É isso. Amo vocês. Beijos.
Três dias após o email, estou no carro, com minha mãe e o motorista, em direção ao interior de São Paulo, para me internar num hospital psiquiátrico. Não consigo pensar direito. Meu psiquiatra falou que é “uma clínica de classe média alta, referência em tratamento de dependentes químicos”.
Aceitei quando ele deu a sugestão, também porque minha outra e única ideia era o suicídio, que certamente poderia aguardar mais um mês ou dois. Eu mesmo liguei na clínica solicitando minha internação e fui avisado que o tempo de espera seria de aproximadamente 2 semanas, prazo para pacientes que dependem de aprovação do seu plano de saúde. Ainda assim, fui pego de surpresa.
No dia seguinte minha mãe me convidou para almoçar. Recusei, ela insistiu, recusei novamente.
Queria curtir minha depressão sozinho e aproveitar os dias de liberdade que me restavam. Logo depois recebo uma ligação do meu pai.
-“Você já sabe que vai ser internado depois de amanhã?”.
-“Não. A Mama me ligou, mas não disse nada.”.
-“Ela devia querer te contar de maneira mais delicada. Como você será internado como paciente particular, arrumaram uma vaga rapidamente. Vou emprestar o motorista para te levar. Vou pedir para meu advogado fazer uma procuração para acertar suas contas aqui fora. Um beijo.”
Disse que não assinaria a procuração, ainda restava um pouquinho de orgulho, mas minha mãe não teve dificuldades em me convencer a assinar um pouco mais tarde.
Era hora de tomar medidas práticas: avisei 3 grandes amigos que ficaria internado e pedi para que, se alguém perguntasse, dissessem que eu estava num SPA. Liguei para uma amiga e pedi para que ela ficasse com minha cachorrinha Puppy - uma yorkshire gorda e mimada – durante minha internação. Por fim, preparei minha despedida para aquela noite: comprei 24 garrafinhas de Heineken e encomendei 5 gramas de cocaína para minha despedida. Como vinha acontecendo, usava drogas quase chorando, sozinho, dentro da minha casa.
A caminho da clínica, mesmo de ressaca, percebo que o motorista erra o caminho, mas não reclamo. Não estou com pressa para ser trancafiado com um monte de malucos.
Depois de rodar mais meia hora em círculos, perco a paciência e sugiro que o motorista peça informações para alguém. Ele para em frente ao mais sujo dos botecos e o mais bêbado entre os pinguços encosta na janela do motorista, com metade do seu corpo para dentro do carro.
Consigo sentir o cheiro de pinga. O que ele fala parece com dialeto português. Consigo entender “...já fiquei lá 3 vezes, é muito bom...”. Deve ser ótimo!, resmungo para minha mãe. Dá para ver que funcionou direitinho no caso dele.
Chegamos. É uma fazenda linda, enorme e muito bem cuidada. Li no site que além da área para tratamento de dependentes químicos e alcoólatras, existem áreas para tratamentos de pessoas com problemas psicológicos, idosos em fase terminal e um hospital que atende pacientes da rede pública.
Da portaria à recepção são 10 minutos de carro numa estrada de paralelepípedos. Só vejo uma mata que mais parece um jardim de tão bem cuidada, e quase nenhuma construção.
“Parece o Unique Garden!”, diz minha mãe, referindo-se a um spa de luxo que ela vai de vez em quando. Então por que você não fica no meu lugar?, pergunto. Ela não responde, e continuamos em silêncio até chegarmos à recepção.
No momento do “check-in”, enquanto ela assina a papelada, a atendente me dá um contrato para que eu assine. Que tipo de advogado escreve um documento para ser assinado por alguém que está se internando numa clínica psiquiátrica? Pergunta retórica, não precisa ser de tipo específico, qualquer advogado faria isso. Obviamente não tenho condições de ler, mas assino.
Passo seguinte, entrevista com a psicóloga, minha mãe ao meu lado.
“Qual sua droga de preferência?”.
“Preciso escolher uma?”.
“Como estava sendo seu uso de drogas?”.
“Excessivo, ou não estaria aqui, não acha?”.
“Ok. Qual a quantidade e quais drogas você usava ao longo de uma semana?”.
“Nos últimos 6 meses, quando estive no auge da depressão, bebia e cheirava cocaína 2 ou 3 vezes por semana. Umas 10 ou 15 long necks e uns 3 ou 4 gramas de cocaína num dia. Em geral, tomava Rivotril e fumava maconha para conseguir dormir depois.”
Não olhei para o lado, mas percebi que minha mãe não se moveu, mesmo sem nunca ter tido a dimensão do meu problema antes disso. Parte da bagagem de um interno é um gigantesco sentimento de culpa.
A mudança é impressionante! Parabéns! Nunca é tarde!
Eu passei por três internações, e me identifico com sua experiência. É um baque e tanto, um choque de realidade tremendo, pois a gente sente o peso de ter uma vida fracassada. Cada uma das experiências foi diferente, mas a soma das três acabou me trazendo onde estou agora, me aproximando de completar um ano depois da ultima passagem por uma comunidade terapêutica, pelo período também de um ano. Como nesta última vez eu fui me internar por conta própria, tomei as rédeas de todo o processo e assumi total responsabilidade por minha condição, estou convicto que tenho uma chance melhor de conseguir manter a sobriedade, um dia de cada vez. Estou com 56 anos, minha adicção começou aos 11,…